- Quanto você gosta da sua vida?
- Nada.
Repousou calmamente a caneta na mesa e me fitou profundamente. Provavelmente estava repensando sua carreira, todos aqueles anos quase frustrados na faculdade de medicina... Não que eu ligasse muito.
- Está tudo bem? Digo... fora o resultado desses exames que estão aqui.
- Só quero saber o quanto doeria.
- Você realmente sequer considera deixar isso na mão do destino? Seus órgãos estão parando. Você é nova.
- Exato. Sou nova. Não acha que isso talvez seja exagero?
Ele riu. Não foi uma gargalhada, mas foi mais do que um sorriso.
Permaneci séria.
- Não entendo...
- O que?
- Ok. Vou te explicar como funciona o tratamento...
- Não, doutor. É sério. O que acontece se eu não me tratar?
Ele não me encarava mais.
Procurou algo na gaveta ao lado da sua mesa e logo desistiu.
- Eu não entendo...
- O que, doutor?
- Você faz faculdade?
Olhei desconfiada. Lá vinha.
- Faço.
- Quer se formar?
- Doutor, sério. Me responde, por favor.
- ...
- Sim, quero me formar. A ideia é terminar a faculdade sem dp nenhuma, aliás.
- Você parece determinada...
- Não sou muito, não...
Outra pausa. Não saberia classificar aquele olhar em compaixão, pena ou incredulidade.
- Sobre o tratamento
- Doutor! - Interrompi de novo. Não precisei sequer continuar a frase.
- Seus órgãos vão parar um a um. Não sei te dizer qual vai parar primeiro e não posso responder sobre a dor com precisão, pois depende do órgão. Depende de vários fatores...
- Então pode ser que eles nem parem...
- Você é otimista!
- Não. Só não quero me tratar.
- Você é bastante tolerante a dor?
- Nem um pouco.
- Não parece assustada.
- Olha... eu poderia te dizer que eu caí de um cavalo e fui pisoteada por um rebanho antes de saber escrever. Posso te contar que eu quebrei o pé e minha mãe não acreditou e só fui parar no hospital quando uma professora minha ficou inconformada com o tamanho do inchaço, dias depois. Posso falar das violências que já sofri. Posso falar que já fiquei presa em um anzol. Contar que tenho uma coordenação motora horrível e caio com frequência. Posso te lembrar da queda que tive ano passado, quando tive uma convulsão e chorava de dor todo dia, por mais de um mês... Posso fazer isso...
- Você parece bem resistente.
- Eu diria que estamos aí.
- ....
- Que foi?
- Não se acha resistente?
- Eu acho que tenho uma história complicada.
- É, seu histórico é bastante ruim.
- Não to falando de saúde.
Ele voltou a me olhar no olhos. Me encarou com firmeza.
- Você é forte.
- Sou resistente.
- Mas foi o que eu disse primeiro...
- Sim.
- Quer me explicar?
- Não.
Ele riu.
- Então. A primeira parte do tratamento é muito simples.
- Vai doer?
- Já disse que não consigo te responder precisamente...
- Mas o que você acha?
- Acho que vai.
- Não vou fazer.
- Você acabou de falar que é resistente!
- Exato. Você não acha que eu já resisti a muita coisa?
- Esse tipo de coisa acontece...
- Eu sei.
- E então?
- Não quero.
- Não quer se tratar?
- Não quero viver em um mundo que essas coisas acontecem.
- Mas são acidentes. Entenda... eu sequer teria um emprego se isso não acontecesse.
- Você vive da desgraça alheia.
- Vivo para salvar as pessoas.
- Ah é? - desafiei.
Ele riu de novo. Dessa vez foi gargalhada, sem um pingo de ironia.
- Vamos lá. Você é resistente. Já passou por um monte de coisa. Por que não se tratar?
- Não acho que vale a pena.
- Você não vale a pena?
- Não.
Ele coçou o queixo. Pegou a caneta, estalou. Coçou a cabeça.
- Não entendo...
Bocejei.
- Você já foi pisoteada por cavalos, ficou dias com o pé quebrado, sofreu uma queda feia e ficou sem tomar remédio para dor... Menina!
- Eu cresci em uma família hostil. Fui traída por namorados com melhores amigas. Perdi grandes amigos em acidentes de trânsito, quase na mesma semana. Minha melhor amiga mora em outra região do país. E ainda não sou capaz de falar sobre meu amigo...
- Tudo bem.
- Que?
- Não precisa falar. Sou seu médico há algum tempo, lembra?
- Você sabe a história?
- Pouco... Sei que uma das minhas pacientes mais divertidas ficou muito tempo sem um brilho no olhar... Vinha aqui, conversava, ria das minhas piadas sem graça de médico... Mas estava vazia.
- Eu não lembro de você.
- Sério?
- Sim.
- É por causa dele que você não quer se tratar?
- Não. É por mim.
- Você opta por algo irresponsável e que pode te matar... por você?
- Basicamente.
- Menina!
- Não seja dramático!
Estava começando a gostar daquele sorriso. Fiquei pensando no nível de carência que é necessário alguém alcançar para ficar tanto tempo conversando com seu médico...
- Então. Você vai se tratar, dra-má-ti-ca.
- Por que você faz tanta questão disso?
- Eu não ganho comissão por vida salva, sabe? Isso é só meu trabalho.
- Olá, Balotelli.
- Você acompanha futebol, então?
- Eu não gostava de futebol aos quinze anos?
- Não. Você era emo, lembra?
- Sério? O meu médico, que eu nem sabia que era meu também tá me zoando? Eu posso te processar, não posso?
- Só se você se tratar.
Fiquei sem reação.
Mentira. Apenas não tinha percebido a reação que havia tido.
- Eu...
- Você ainda sabe sorrir!
Meu sorriso se abriu mais.
- Olha, cara. Curto gente chata. Curto quem presta atenção em detalhe. Como funcionaria essa droga de tratamento?
- Você faz o que eu mandar, toma os remédios que eu passar e aí teremos muito mais da sua rabugice por mais tempo.
- Oi?
- São apenas alguns remédios, pra começar. Checamos como seu organismo reage e só se ele negar tudo a gente vai ter que pensar em algo tipo diálise...
- Com aqueles gelzinhos?
- Você ainda se diverte em hospitais?
- Só quando meus médicos são legais.
- Você não disse que sou chato?
- E é.
Ele levantou apenas uma das sombrancelhas.
- Então...
- Cara! Eu sempre quis fazer isso!
- O que?
- Levantar só uma sombrancelha.
- Vamos falar do seu tratamento?
- Vamos, né. Você não quer mais conversar comigo...
- Eu não sou psicólogo, sabe...
- Ainda bem. Detesto psicólogos.
- Eu também.
- ...
- Mas então. Você vai me contar como fez para levar seus órgãos à falência?
- Eu sou muito ruim com dinheiro, cara
- É muito ruim de piada, na verdade.
HHAHAHAHAHAHAHAHA. Gostava daquele cara. Nerd. Passar anos estudando para virar médico? E de fato se importar com a vida? Que chatice.
- Você sabe como eu consegui.
- Sei a parte teórica.
- Como assim?
- Sei que você não pode nem ver uma sonda até hoje sem passar mal. Vi você se arrepiando quando a enfermeira falou de lavagem estomacal. Reparei sua nova ânsia instantânea com comprimidos.
- Eis a história toda, ué.
- Me conta o começo dela.
- Tive um dia ruim. Depois de muitos ruins. Depois de muita coisa chata, além da história que a gente não conversa. E aí tinham algumas caixas de remédio.
- Só isso?
- Esperava o que? Choro, desespero, promessas? Não... nada de especial. Foi só eu parada em frente à comoda me deliciando com balinhas, todas que haviam na caixa.
- Não parece ruim.
- Não foi.
- Mas é ruim.
- Só porque não me deixaram em paz.
- Não entendo...
- O que?
- Você tá bem mesmo?
- To ótima. Só alguns órgãos aí estão parando e meu médico quer investir na psicologia.
- Foi só uma curiosidade.
- Tudo bem.
- Mesmo?
- Sim... tirando meus órgãos, como eu disse.
- Você é chata, hein.
O encarei.
- Eu vou fazer o tratamento só porque quero voltar aqui e te encher o saco.
- É isso que você faz? Convence alguém a querer te salvar e sai do aperto sozinha?
- Mas nunca foi de propósito.
- Tentou se matar de propósito?
- Falando assim parece muito ruim.
- Você não acha que foi ruim?
- Foi ruim. Porque envolveram aquelas sondas e quase um ano depois eu estou aqui, pagando por cada comprimido, não estou?
- Acha que é um castigo de Deus?
- Não.
- Você acredita em Deus?
- Acho que sim. E se ele existir, ele não vai me presentear com o que eu quero para me castigar, não é mesmo?
- É de se pensar.
- Você sempre enche assim quando quer que uma paciente se trate?
- Pelo menos não tomo comprimidos.
- Touché!
Ele riu, envergonhado.
- Desculpa.
- Cara, eu não tomaria comprimidos... por você. Mas vou tomar esses... também por você. A gente se vê.
- E se doer?
- Deixa que de dor eu entendo. Mas eu nunca tinha conhecido alguém que liga pra dor do outro... e acho que isso faz toda a diferença para que a gente aceite melhor a dor da gente.