sexta-feira, 18 de julho de 2014

Ressignificando mentiras sinceras

Foi meu primeiro namoro sério, almoço em família no domingo, dormir no quarto dele de porta fechada, essas coisas. Depois do primeiro semestre, as brigas banais começaram e antes de completar um ano a coisa degringolou. 

Discutimos, choramos. Impasse.
Ensaio de uma reconciliação.
Perguntei se estava tudo bem. Se estávamos bem.
Ele olhou nos meus olhos e disse sim. Me abraçou e caímos no sono assim.
Acordei, arrumei minhas coisas e tinha que ir embora.
Perguntei antes de decidir se falava que eu o amava: "a gente tá bem?"
Ele sorriu - como quem acha graça na paranoia alheia, como sempre achou - e respondeu: "estamos muito bem. Eu te amo."

Sumiu por dias. Era frio nas respostas. Julguei que eram os problemas no trabalho, rotina atribulada, stress mal lidado.
Chegou uma mensagem no whatsapp. 
E acabou.

Pausa essa cena.



Passou-se mais um semestre, dias atuais.

Uma amiga pede ajuda. Desesperada.

Ela mentiu. Estava sob pressão e mentiu.
Só que isso interferiu no "planejamento de vida" de uma terceira pessoa e essa ficou brava.

Minha amiga está com medo. Ela não mentiu por mal. Não acordou um dia e pensou "hoje eu vou inventar uma mentira só pra ver alguém chorar". 
Minha amiga tem um coração enorme, jamais magoaria ou irritaria alguém de propósito.
Mas ela mentiu.
Oras, não é compreensível?
Todo mundo mente, o tempo todo. Seja porque chegou atrasado no trabalho e porquê não sabe como avisar a pessoa que tal roupa não lhe caiu bem.
As intenções são sempre as melhores. E sim, sabemos qual é o lugar que está cheio de gente bem intencionada.
Mas todos entendemos - e exatamente por isso o ditado famoso existe, imagino.

Tento consolar minha amiga com todos esses argumentos já apresentados.
Você é humana, Maria. Você pode errar, sabe? Pode beber até perder a razão, pode escolher um curso de faculdade que sabe que não vai terminar, pode mentir. Claro que é uma droga quando nossos erros pessoais interferem de modo negativo na vida alheia. Claro que não é muito justo. Mas aconteceu. 
Qual é o problema das pessoas em aceitar o erro alheio, hein? Quanto exagero!

Você nunca errou, não, hein?
Nunca mentiu e não soube o que fazer com o monstrinho que criou e urrava de fome?
Começou com uma mentira sobre meteriologia e terminou com um casamento, não foi?
É, mentiras saem de controle.
O que a gente pode fazer é não se acostumar, não elegê-la como ideal, não se acostumar.



Voltamos há seis meses atrás.
A sensação foi de profunda traição. Preferia que ele tivesse transado com todas as mulheres da minha família mas não tivesse mentido pra mim. Preferia flagrá-lo com outra mas que ele não tivesse olhado nos meus olhos e afirmado algo que não sentia. Preferia não ter ficado atordoada quando o fim veio de uma maneira tão lancinante.
Sempre achei que foi de propósito, má fé mesmo. Não havia outra explicação.
Queria que mentiras sinceras explodissem todas e que todas as pessoas que magoam sem se importar fossem condenadas à prisão perpétua.



Eu sempre pedi para as pessoas pararem de mentir!
Sempre atribuí todos meus traumas à profunda irresponsabilidade alheia com os meus sentimentos, geralmente embasados em mentira.
A maioria dos posts desse blog ou do meu caderninho não deixam dúvidas...

Mas hoje não!
Hoje meu pedido é sobre tolerância e aceitação.
Sobre olhar para o outro ser humano que errou e reconhecê-lo como igual, com suas fraquezas. E perdoá-lo por isso.

Veja bem, mentira continua sendo algo horroroso. Mas se você não levar pro lado pessoal, pode enxergar uma perspectiva que nem sabia que existia.


Está tudo bem, ex namorado. 
Está tudo bem, Maria.
Acontece. 
E se vocês estiverem dispostos a tentar arrumar essa bagunça, mãos à obra, tá?
Responsabilidade com o sentimento alheio talvez envolva mentira também, porque envolve humanidade. Mas responsabilidade com o sentimento alheio talvez seja justamente se importar o suficiente para não deixar que a outra pessoa pague pelo seu erro, mas sem se martirizar por isso. 
Essa responsabilidade provavelmente fique clara apenas na intenção mesmo. No se importar. Tente manifestar isso. Assuma as consequências e faça dessa experiência uma prova de importância.

Com amor e aceitação,
Maiara.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Vagão segregação

Quando uma pessoa comete um ato que prejudique outro cidadão, a proposta é que ela seja denunciada, julgada e condenada a pagar pelas suas ações. Correto?
Não é a vítima que deve ter sua rotina, locomoção ou vida prejudicada (ainda mais).
Correto?

Me expliquem, então, por quê criar um vagão exclusivo para mulheres com a tentativa de coibir assédios?

Desde que comecei a me dedicar a questões feministas, achava até graça como o que é óbvio pra nós muitas vezes é pintado como "absurdo" ou "radical" por machistas.
Acredito que seja de conhecimento geral que decotes, saias curtas ou a madrugada não estupram. Estupradores estupram. E como ainda não inventaram uma maneira de mulheres - que são a grande esmagadora maioria das vítimas desse crime hediondo - saírem sem seus próprios corpos, pouco ao pouco, conseguimos expressar para a sociedade que o sistema patriarcal é o grande patrocinador desses ataques, não a conduta feminina.
Em outras palavras: O MUNDO É NOSSO TAMBÉM!

Considerando todo esse cenário, é com grande surpresa que observei feministas defendendo a proposta de um vagão exclusivo para mulheres.
Debati com muitas e tentei entender o posicionamento contrário. Cheguei a ler que "é mesmo muito bom poder pegar o trem sem macho nojento se esfregando".
Olha, eu imagino que realmente seja maravilhoso utilizar um transporte coletivo que é, inclusive, caro e precário, sem sofrer assédio. E é pra isso que o feminismo existe, não?

Eu não quero oprimir homens. Não quero estuprá-los, roubar suas vagas no mercado de trabalho ou fazê-los temer pela própria integridade a todo instante. Meu sonho de oprimida não é me igualar ao opressor.
Minha luta é, definitivamente, pela equidade. Igualdade real de direitos e deveres.
Não acredito que segregar seja aceitável para proteger!

Não me ensinem onde devo estar, como devo me portar e quais escolhas tomar, patriarcado.

Eu já volto para casa pelo caminho mais longo, porém mais iluminado, quando já anoiteceu.
Eu já deixo de utilizar uma roupa curta ou decotada quando sairei desacompanhada.
Eu tenho medo. Muito medo.
Eu já sofri ataques - o mais recente, vejam só, no metrô. 
Eu, como toda mulher, estou ciente que sou um alvo ambulante. Sei que acreditam que meu corpo é de domínio público. 
Mas não é ficando em casa que mudarei esse cenário.
Quem precisa ser privado de liberdade é quem me agride.

Minha luta em busca de libertação não pode se condicionar a menos liberdade, mesmo que temporária. Porque isso nem faz sentido.

É extremamente ofensivo que, mais uma vez, me digam que meu lugar na sociedade será sempre onde mandarem. Século XXI, 2014 e mais uma vez focam na vítima e não no agressor.

O "vagão rosa", feministas, não nos protege! Protege o assediador!
Ainda haverão assédios, abusos, estupros. Só que - com otimismo - será fora do vagão exclusivo.
Isso atrasará severamente pedidos para tomada de medidas mais efetivas.
Não serve, irmãs. Nem como medida paliativa.

"Existem mulheres que não conseguem andar em vagões mistos!" - Algumas dizem.
Também existem mulheres que não vão conseguir sequer entrar no "vagão rosa", eu respondo.
O que faremos quanto à essas que ficarão ainda mais vulneráveis?
O que faremos quando mulheres trans* sofrerem represálias ou serem deslegitimadas ao tentar utilizar o espaço exclusivo?
O que faremos quando uma mulher que já é vítima e já carrega traumas, não conseguir adentrar no vagão específico por que ele já está hiper lotado - que é a realidade paulista cotidiana?
O que faremos quando a mulher periférica, após trabalhar arduamente o dia inteiro, tiver que escolher entre ficar criticamente apertada entre outras dezenas de mulheres ou correr o risco de ser assediada num espaço que terá ainda menos mulheres que poderiam apoiá-la?

A proposta de vocês é proteger uma minoria em detrimento da maioria? 
Somos mais da metade dos usuários de transporte coletivo!
Você realmente está disposta a se sentir um pouco mais protegida se o preço disso é colocar mais mulheres em risco?  
Isso, do meu ponto de vista, é feminismo de elite. Feminismo branco, liberal e transfóbico.
Um feminismo que não se questiona, que privilegia quem já é privilegiado, que não ouve outras mulheres e ignora vivências.

Audre Lorde já deixou claro: Não serei livre enquanto houver mulheres que não são, mesmo que suas algemas sejam muito diferentes das minhas. 
E eu não quero ser salva se isso ferir minhas irmãs!