quarta-feira, 9 de julho de 2014

Vagão segregação

Quando uma pessoa comete um ato que prejudique outro cidadão, a proposta é que ela seja denunciada, julgada e condenada a pagar pelas suas ações. Correto?
Não é a vítima que deve ter sua rotina, locomoção ou vida prejudicada (ainda mais).
Correto?

Me expliquem, então, por quê criar um vagão exclusivo para mulheres com a tentativa de coibir assédios?

Desde que comecei a me dedicar a questões feministas, achava até graça como o que é óbvio pra nós muitas vezes é pintado como "absurdo" ou "radical" por machistas.
Acredito que seja de conhecimento geral que decotes, saias curtas ou a madrugada não estupram. Estupradores estupram. E como ainda não inventaram uma maneira de mulheres - que são a grande esmagadora maioria das vítimas desse crime hediondo - saírem sem seus próprios corpos, pouco ao pouco, conseguimos expressar para a sociedade que o sistema patriarcal é o grande patrocinador desses ataques, não a conduta feminina.
Em outras palavras: O MUNDO É NOSSO TAMBÉM!

Considerando todo esse cenário, é com grande surpresa que observei feministas defendendo a proposta de um vagão exclusivo para mulheres.
Debati com muitas e tentei entender o posicionamento contrário. Cheguei a ler que "é mesmo muito bom poder pegar o trem sem macho nojento se esfregando".
Olha, eu imagino que realmente seja maravilhoso utilizar um transporte coletivo que é, inclusive, caro e precário, sem sofrer assédio. E é pra isso que o feminismo existe, não?

Eu não quero oprimir homens. Não quero estuprá-los, roubar suas vagas no mercado de trabalho ou fazê-los temer pela própria integridade a todo instante. Meu sonho de oprimida não é me igualar ao opressor.
Minha luta é, definitivamente, pela equidade. Igualdade real de direitos e deveres.
Não acredito que segregar seja aceitável para proteger!

Não me ensinem onde devo estar, como devo me portar e quais escolhas tomar, patriarcado.

Eu já volto para casa pelo caminho mais longo, porém mais iluminado, quando já anoiteceu.
Eu já deixo de utilizar uma roupa curta ou decotada quando sairei desacompanhada.
Eu tenho medo. Muito medo.
Eu já sofri ataques - o mais recente, vejam só, no metrô. 
Eu, como toda mulher, estou ciente que sou um alvo ambulante. Sei que acreditam que meu corpo é de domínio público. 
Mas não é ficando em casa que mudarei esse cenário.
Quem precisa ser privado de liberdade é quem me agride.

Minha luta em busca de libertação não pode se condicionar a menos liberdade, mesmo que temporária. Porque isso nem faz sentido.

É extremamente ofensivo que, mais uma vez, me digam que meu lugar na sociedade será sempre onde mandarem. Século XXI, 2014 e mais uma vez focam na vítima e não no agressor.

O "vagão rosa", feministas, não nos protege! Protege o assediador!
Ainda haverão assédios, abusos, estupros. Só que - com otimismo - será fora do vagão exclusivo.
Isso atrasará severamente pedidos para tomada de medidas mais efetivas.
Não serve, irmãs. Nem como medida paliativa.

"Existem mulheres que não conseguem andar em vagões mistos!" - Algumas dizem.
Também existem mulheres que não vão conseguir sequer entrar no "vagão rosa", eu respondo.
O que faremos quanto à essas que ficarão ainda mais vulneráveis?
O que faremos quando mulheres trans* sofrerem represálias ou serem deslegitimadas ao tentar utilizar o espaço exclusivo?
O que faremos quando uma mulher que já é vítima e já carrega traumas, não conseguir adentrar no vagão específico por que ele já está hiper lotado - que é a realidade paulista cotidiana?
O que faremos quando a mulher periférica, após trabalhar arduamente o dia inteiro, tiver que escolher entre ficar criticamente apertada entre outras dezenas de mulheres ou correr o risco de ser assediada num espaço que terá ainda menos mulheres que poderiam apoiá-la?

A proposta de vocês é proteger uma minoria em detrimento da maioria? 
Somos mais da metade dos usuários de transporte coletivo!
Você realmente está disposta a se sentir um pouco mais protegida se o preço disso é colocar mais mulheres em risco?  
Isso, do meu ponto de vista, é feminismo de elite. Feminismo branco, liberal e transfóbico.
Um feminismo que não se questiona, que privilegia quem já é privilegiado, que não ouve outras mulheres e ignora vivências.

Audre Lorde já deixou claro: Não serei livre enquanto houver mulheres que não são, mesmo que suas algemas sejam muito diferentes das minhas. 
E eu não quero ser salva se isso ferir minhas irmãs!

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O que você acha disso?