sábado, 23 de agosto de 2014

Existe vida após um aborto!

Eu nasci com uma vagina e ainda com pouquíssimos anos de vida já havia descoberto que isso me traria alguns problemas complexos durante minha vida. Lembro que no Jardim de Infância, com uns quatro anos, ao brincar e correr no recreio, eu bati a virilha contra um painel baixo. Hoje tenho 21 anos e lembro perfeitamente da dor excruciante que senti. Mas não contei pra professora, nem pras minhas irmãs. Tinha medo de pensarem que eu havia feito qualquer coisa que justificasse estar com a vagina doendo (Observem como a cultura do estupro se manifesta desde os primeiros momentos). No banho, tive que contar pra minha mãe. Ela quis contar para o meu pai e/ou me levar ao médico. Morri de medo ao imaginar um homem olhando ou tocando meu genital. Só deixei no dia seguinte, quando minha mãe descobriu uma pediatra. Ficou tudo bem, mas as lembranças detalhadas dessa experiência me servem pra lembrar que minha natureza poderia ser uma grande armadilha.
Com uma família conservadora e frequentando intensamente a igreja até uns 15 anos, queria casar virgem. Sem nunca parar pra refletir com os discursos que eu dizia concordar, acreditava que aborto era assassinato. Simplesmente ignorei aulas de ciências e biologia que deixam claro que até ao menos 12 semanas, não há desenvolvimento suficiente DO FETO para que se acredite que ele tem capacidade sequer de sentir dor. Rompi com a igreja ao começar a questionar os dogmas e repudiar casos de homofobia e conservadorismos que impediam o debate saudável de ideias. Continuava acreditando muito em Deus e ainda tinha orgulho da minha virgindade. Então, chegou o questionamento desse orgulho. Sempre fui muita reservada para questões íntimas, mas não conseguia julgar qualquer outra pessoa que não tivesse as mesmas barreiras psicológicas que eu e preferisse manter uma vida sexual diferente da que, até então, eu havia escolhido para mim mesma. Achava que sexualidade era normal como qualquer experiência humana e que cada um era responsável pelas decisões sobre o próprio corpo. E só. Fui diagnosticada com depressão. Minha relação familiar era conturbada e eu decidi não ter filhos pois duvidava da minha capacidade de ser responsável por outra vida.
Aos 16 anos, fui vítima de estupro. O agressor foi um conhecido. Não tive coragem de denunciar, nem sabia o suficiente sobre sexo para entender realmente o que havia acontecido mas alguns amigos me fizeram tomar uma pílula do dia seguinte. A depressão piorou e começaram os impulsos suicidas gravíssimos. Aos 18, após internação resultante de outra tentativa frustrada de pôr fim ao meu sofrimento, comecei a dar alguma atenção à minha saúde psiquiátrica. Decidi perder a virgindade. Foi uma experiência ruim mas camuflava e ignorava meus próprios sentimentos de maneira automática. Morria de medo de engravidar e nas poucas relações que tive, nunca deixei de usar preservativo. Ainda assim, quando eu tinha uma relação sexual ficava extremamente desequilibrada, assustada com a possibilidade de gravidez. Tomei pílula do dia seguinte mesmo usando preservativo em ao menos uma ocasião até que interrompi minha vida sexual. Era muito, muito, muito estressante pra mim, sempre tive muito medo de engravidar e ter que encarar o que sempre achei: que eu era um problema e uma vergonha pra minha família. Não aguentava a pressão.
Com 20 anos, comecei a namorar, estava no último ano da faculdade e seguia com o tratamento psiquiátrico. Em julho, minha menstruação atrasou, mas sempre atrasava por causa do meu nervosismo constante. Em agosto, atrasou mais de uma semana. Fiz um teste de farmácia e deu positivo. Batia minha barriga contra paredes e objetos. Chorava. Suplicava para aquilo não estar acontecendo. Via que ia passar por nove meses de pura aversão ao que estava acontecendo no meu próprio corpo. Via interrompendo meus estudos. Via um futuro tenebroso para um ser inocente mas que iria se desenvolver em um corpo de alguém que nunca teve uma relação saudável consigo mesma. Fiquei um mês de cama. Levantava poucas vezes na semana, para tomar banho. Vomitava, tinha febre e não comia nada, nunca. Após a primeira semana de cama, tomava soro caseiro e forçava alguns sucos. Torcia para morrer e ainda assim ficava triste em pensar que minha família descobriria a gestação após meu óbito.
Eis que consegui fazer um aborto. Vi o feto quando ele saiu, com quase 13 semanas de gravidez: menos de 3 centímetros e uma consistência gelatinosa - era isso que estava acabando comigo. Mas acabou. Me senti grata demais por ter conseguido um procedimento seguro e sinto muito por cada mulher que é condenada à morte em cada canto do país em que o processo de abortamento é criminalizado. A primeira coisa sólida que comi depois daquela experiência traumática foi chocolate e a sensação foi de puro alívio. Pela primeira vez na vida, senti esperança, senti que minha vida poderia ser melhor e ter um sentido. Meu namoro terminou, me formei na faculdade e estou abrindo uma ong de apoio à pessoas com tendências suicidas.
Posso dizer que só descobri a felicidade ao assumir controle sobre meu corpo e meu destino.
Eu era suicida, fui estuprada e fiz um aborto.
Hoje, sou feliz.


Relato para o coletivo Leila Diniz.

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