Num dia de festa, sofri um dos mais hediondos crimes. Não motivado por beleza, pelo meu caráter ou conduta sexual. O único motivo era que eu era um alvo. Porque é o que mulheres são.
Eu não entendi que o que havia acontecido comigo era estupro. Como muitas pessoas, eu imaginava que estupro era aquela situação em que você está andando sozinha em um lugar escuro e algum maníaco te agarra à força e te leva pro mato.
Achei que não era nada de mais, afinal. Eu era virgem, mas imaginei que era algo que "acontecia". Pessoas próximas e conhecidas souberam e ninguém considerou o caso como um crime. Também porque uma das características principais de abuso são quase imperceptíveis a olho nu: os danos causados. Principalmente na vítima.
Não denunciei. Não sabia que se aproveitar de uma pessoa inconsciente era estupro também.
Mas eu chorava todos os dias. Um grande amigo comprou pílula do dia seguinte e outra amiga se voluntariou para ir comigo ao médico.
Eu, só queria morrer. Me matar.
Foi a primeira vez que apresentei reais tendências suicidas.
Comprei veneno.
Não morri.
Não morri mas também os dias que se sucederam não foram o que se pode chamar de vida.
Nunca consegui me perdoar por ter saído de casa naquele dia, por ter deixado um cara que eu sempre considerei nojento se aproximar. Achava que a culpa era minha. Porque é o que vítimas sentem.
Curiosamente, mesmo que eu e as outras pessoas não soubessem/admitissem que eu havia sido vítima de uma agressão sexual, todos se certificavam de que eu não cruzasse mais com meu algoz. Demorou um ano para eu parar de andar com aquela turma de "amigos".
Demorou mais um ano para que eu tentasse me suicidar mais uma vez, só que dessa vez realmente chegando perto de alcançar meu objetivo.
Fiquei internada, prejudiquei seriamente minha saúde. Passei por vários tipos de tratamento - nenhum deles psicológico.
Como não havia morrido, tentei recomeçar. Até porque era o que havia de possibilidade. Honestamente, eu não sabia que aquela noite ruim em 2009 era a razão mais forte das minhas doenças e crises de depressão.
Nunca mais consegui ter nenhuma relação razoável. Sou problemática, sensível, assustada, nervosa e pouquíssimas pessoas costumam aguentar "meus dramas" por muito tempo. Não que eu mesma consiga.
Já inserida no feminismo, descobri que aquela noite ruim de anos atrás tinha nome e pena prevista em lei: estupro. Então, eu sabia, claro que eu sabia. Mas como se assume estuprada? Como se convive sabendo que não foi um mal entendido, não foi alguma atitude minha que fez com que eu me aparentemente disponibilizasse para sofrer aquilo? Não admitia. Sentir culpa também é um jeito complexo, mas sincero, de se fugir da dor mais latente.
Mas acontece que a culpa não era minha. Nunca foi e nunca será.
Apenas a verdade me ajudou a lidar com o problema.
Cinco anos depois, transformei um trauma em munição.
Eu não posso mudar o que aconteceu. Não posso impedir que estupradores sumam todos da face da Terra. Infelizmente, sabemos que estupros continuarão acontecendo.
Mas eu posso fazer hoje justamente o que não fizeram por mim, selando meu destino traumático.
Vítimas precisam saber que, por mais animalesco e injusto que seja, a nossa única defesa é nossa voz.
Denuncie!
Me exponho agora porque me escondi antes.
Agora grito, porque já me calei demais.
Violências acontecem mas nunca, sob nenhuma circunstância, isso pode ser considerado normal. Não é.
Absolutamente nenhum tipo de violência pode ser aceitável, mas objetos ainda podem ser recuperados. Vidas não.
Não deixe que experiências extraordinariamente terríveis definam quem você é. Não define.
Não cabe aqui te mentir falando que as pessoas entendem.
Tem gente que subestima, tenta relativizar, faz piada.
Mas você tem que respirar fundo e continuar vivendo, porque agora já aconteceu. Te resta viver com a ferida.
E enquanto você tá tentando voltar a respirar lembrando disso, tem um grupo muito grande rindo pra caralho.
Porque humilhar mulheres é engraçado.
Porque rodar faca em ferida é engraçado. (Lara Luccas)
Se der, se você achar que aguenta, se sentir que pode, transforme toda a dor em luta também.
Eu não pude denunciar porque toda a sociedade me deteve. A exposição, o constrangimento, o medo de retaliação e exclusão social, as possíveis justificativas que até mesmo policiais criam.
Eu não tinha com quem contar e eu me arrependo. Não admita levar a culpa do que não fez. Converse com alguém de confiança. Conte para quem possa ajudar. Confie em quem goste de gente.
Vire o jogo.
"Não deixem que experiências extraordinariamente terríveis definam quem você é. Não define"
ResponderExcluirTexto intenso, Má Eduarda! Guerreira!